terça-feira, 6 de novembro de 2012

Danço


Danço

Descompassada.
Fora do ritmo.
Desengonçada.

Pés, pernas, corpo e alma...
Embalados pelo som leviano da solidão.

Não há público.
Não há palco.
Só há ilusão.

Um dia já foi estrela.
Com saudades de si mesma, fechou o livro que lia e pegou o caderno para escrever o seu. Esboçou suas primeiras linhas de recordação:

No palco solitário de tábuas corridas, já um tanto gastas e velhas, a cortina vermelha mostrava as pontas dos pés de quem ali, no mesmo lugar, escreveu histórias bordadas pelo mais doce calor de aplausos e admiração. Eram meus pés.

A cortina cobria meu rosto vermelho que chorava a dor do meu último espetáculo. Foram anos dançando no mesmo lugar. E a cada dia, a cada espetáculo, a cada dança e a cada passo, me vinha uma sensação diferente.

Me alimentava dos olhos brilhantes e entusiasmados que assistiam aos meus movimentos, às vezes lento, às vezes sereno e sempre agressivo na forma de conduzir os saltos, que era a maneira que gostaria de conduzir minha vida.

A dança, quando cheia de sentimento e entrega, provoca sonhos muito além da imaginação. As almas expectadoras, nem sempre calmas, esperam pelo ápice da fartura desta mistura de movimentos e sons. Aguardam pela satisfação entusiasmada de... "sou mais que um corpo sem estação".

Porque, na verdade, todos nós desejamos nos sentir mais do que somos. Todos nós desejamos sentir mais do que sentimos. E por fim, somos menos do que tudo que poderíamos ser.

Me levanto e, ainda no palco cheio de mim... cheio das minhas lembranças... Saio a andar e não escondo mais meu rosto vermelho. Abro as cortinas e meus olhos ainda choram. Lamento a falta de público. Porque, de tudo que apresentei ali, para tudo que senti havia alguém a registrar.

É difícil não ter quem registre uma despedida.
Não há ninguém para ver minha solidão. Não ouço aplausos. Não tenho o brilho dos olhos de admiração. Já não há mais público.

De tudo, tenho as boas lembranças e, ainda, a dança. Mesmo descompassada... mesmo desajeitada... Sem ensaios prévios, me entrego ao compasso do meu coração.

Não desço do palco. Não saio de cena.
Danço enquanto restar a última gota da minha emoção.

Débora Andrade

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